Cultura
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Zé Ramona

Ana Calazans

Cresci ouvindo as histórias de Zé Ramona contadas por minha avó e minha mãe. Há um tempo comecei a rascunhar um livro sobre ele e parte de minha família. Ninguém mais sabe dele; o tempo fez com que sua figura fosse ganhando camadas na minha cabeça para cobrir os buracos de sua história. O texto a seguir não é parte do livro, é um relato real fantasiado ou uma ficção baseada em fatos reais. Quem quiser ler fique à vontade para decidir o que não aconteceu de verdade e o que aconteceu de mentira.

Scena I

Ir ao cinema exigia um esforço extenuante para o rapazote recém saído da adolescência. Beirando o metro e 90, espadaúdo e com uma pele que refletia tons de azul de tão negra, ele não passava desapercebido em meados dos anos 20 em uma capital provinciana em que os filhos e netos de escravos não eram vistos em ambientes ‘familiares’ fora das casas ou desacompanhados de seus patrões. Para ir sonhar com Valentino, Novarro ou Pola Negri, ele primeiro precisava convencer Alice, a governanta, uma mulher de pele clara, a acompanhá-lo; depois passava horas engomando o terno de segunda mão de linho ou casimira, lustrando o cabelo e se perfumando.

Naquele domingo, José, que, por desconhecimento de pai, mãe e antepassados, foi batizado como José do Nascimento, iria ver ‘Ramona’, com Dolores del Rio, sua atriz predileta. Empertigado e altivo, só o olhar tenso denunciava a timidez. Mas, ao sentar na cadeira afastada do Cine Odeon ou do Capitólio, já não lembro mais, e ver surgir Dolores como Ramona, a mestiça de mexicano com nativa americana vítima de preconceito e racismo por corajosamente assumir suas raízes, ele teve uma epifania.

Naquele carnaval, José, saiu pelos becos do bairro portuário com tranças feitas de ráfia pintada, um vestido de babados e uma mantilha velha de renda negra, herdada de minha bisavó. Havia nascido de novo, e desta vez com uma identidade que não fora criada por pai, mãe, família ou padrinho, mas que saiu de sua própria alma: ele era Zé Ramona.

Cenas do filme Ramona de 1928

Scena II

Quando chegou ao casarão da Avenida Antônio Brandão no Farol, Zé era um garoto no meio da adolescência; sem certidão e nem passado, havia sido recomendado à minha bisavó Donana, Dona Ana Lins de Albuquerque Calheiros, Porciúncula Nobre pelo casamento, por uma conhecida da família na Ilha de Santa Rita. Muito distinto, a despeito das condições miseráveis em que vivia, sozinho, em uma cabana na beira restinga, fazia pequenos serviços para as donas de casa da região e já era conhecido por seu talento na feitura de peixes, sururu e mariscos variados.

Donana era o que hoje se chamaria de uma mulher polêmica. Amada por muito poucos, era temida e tida em segredo como entojada por quase todo mundo: dos sobrinhos aos primos, dos filhos aos cunhados e cunhadas, das ‘amigas’ da sociedade aos sócios do marido, Jeremias Porciúncula Nobre. Exigente, despótica e prepotente, com laivos de aristocrata, era também uma mulher que não dava a mínima para a opinião alheia, que defendia a família com facão se preciso fosse e reconhecidamente justa – embora mais justa com Chicos do que com Franciscos.

Quando botou olho no rapaz gostou dele de imediato. Com a ajuda de Alice, foi acrescentando repertório culinário ao talento natural de Zé, que logo adotou um torço e um roupão de algodão branco como uniforme da cozinha.

O menino se acostumou logo com a cidade; as idas ao mercado e a lida na casa eram entremeadas com passeios pela vizinhança, especialmente ao Vale do Reginaldo. O Vale era próximo do casarão, logo depois do seminário diocesano; uma balaustrada protegia a vizinhança abastada da ribanceira, mas muito mais do povo que, chegado do sertão e do agreste fugindo da seca, levantava os casebres de taipa. Nas folgas, Zé descia, muitas vezes de bunda, a pirambeira que ia dar no riacho e foi fazendo amizade.

Logo estava íntimo do povo do Catimbó e do Xangô. Foi iniciado como filho de Ogun e Oxun, o dengo e a brabeza encarnadas. Manifestava também um caboclo muito mal-humorado e desaforado, cheio de não-me-toques, quando bebia jurema. Do Reginaldo desceu para as ruelas do Porto de Jaraguá.

Já na casa dos 20 e poucos anos era conhecido por prostitutas, marinheiros, coronéis do interior, malfeitores, rapazes do soçaite e doutores da cidade, que se mesclavam nos bares e casas de tolerância nas ruas internas do bairro portuário. Se dava bem com todos, embora tivesse predileção pela companhia dos marinheiros.

Nos finais de semana em que não havia algum banquete ou sua presença era requisitada para alguma urgência na “Casa Grande” (nome pernóstico pelo qual era chamada a residência de meus bisavós e também a vizinha, de meus tios bisavós Alexandre e Adélia Porciúncula Nobre), ele batia ponto nos bares de Jaraguá. Encostado no balcão na posição nilótica – também conhecida como posição do socó -, quadril quebrado para o lado, o cabelo bem emplastrado de brilhantina, o costume engomado para disfarçar os puídos, não precisava dispender um tostão para beber e comer.

De pouquíssima conversa, seu porte era o bastante para a aproximação de senhores comerciantes do Recife de passagem pela cidade, atacadistas gringos ou fazendeiros do interior, todos pais de família respeitáveis mas indecisos entre a reputação e a safadeza. Todos lhe pagavam de bom grado doses de azuladinha e uma vez até champanhe, em uma orgia em um dos sobrados da rua principal, onde um bordel chique se disfarçava de pensão.

Ramona tratava a todos com educação, mas não gostava de muita intimidade com este tipo de gente, tinha dignidade: se queriam lhe pagar bebida por consideração ele aceitava de bom grado, mas não admitia conversinha de pé de ouvido nem saliência. O amor para Zé era coisa séria e, embora quando a cachaça lhe subia a cabeça a dignidade descesse um pouco, era raro vê-lo de chamego público com algum velhote ou mesmo rapaz.

E ai de quem se metesse a besta: meu bisavô foi inúmeras vezes tirá-lo da cadeia por causa de pisas que aplicava em quem lhe faltasse com o respeito ou se engraçasse com quem ele gostava. Tinha uma mão enorme e um soco de bigorna e também era bom com os pés, apesar de não gostar de chutar; “Quem bate com os pés é Judas”, dizia.

Abaixo vemos Zé Ramona passar pelas calçadas de Jaraguá pelos olhos de Alexandre Viana, protagonista de “Ninho de Cobras” de Lêdo Ivo.

“Alexandre Viana[…] apenas deixava que o engraxate falasse, enquanto o seu olhar acompanhava, no outro lado da rua, o caminhar de Ramona, o pederasta mais famoso da cidade, que avançava em direção à Helvética, de onde vinha o rumor de risos deflagrados em torno de uma mesa cheia de garrafas vazias de cerveja.”

Scena III

Zé Ramona passou a ser uma figura conhecida nas famílias abastadas e nas que faziam de conta pelos seus dotes de cozinheiro e mordomo (ele não só fazia a feira e cozinhava como servia os jantares de gala da casa de meus bisavós e dos próceres da soçaite), e pelos fuxicos das madames. Mas o que fez com que se tornasse uma atração foi o carnaval. Antigamente, a divisão da festa entre ricos e pobres era grande (maior que a de hoje). Os populares faziam seus blocos e saiam pelos bairros, os habitantes de Jaraguá organizavam festas em petit comitê para cair na esbórnia e os ricos, além de frequentarem os bailes dos clubes sociais, desfilavam nos corsos.

Desde que saiu encarnando Ramona em seu primeiro carnaval, Zé a cada ano se esmerava mais na produção de suas fantasias. Passadas as festas de dezembro, mês em que se acabava de trabalhar, já começava a aviar tecidos, pedrarias, penas e o que mais necessitasse para dar vida ao personagem escolhido; Donana e Alice o davam como perdido um mês antes da festa e ajudavam com dinheiro e costura. Gueixa, Cigana, Maria Antonieta e, principalmente, baianas luxuosíssimas de tafetá rebordado de causar despeito em Carmem Miranda. Tamanho luxo e esplendor não podiam encantar apenas os olhos de seus conhecidos. Na elegante Avenida da Paz, entre um V8 e um Corvette, onde desfilava encarapitada a juventude alagoana, abria-se um espaço para a passagem de Zé Ramona, sempre na segunda-feira gorda.

Zé Ramona retratado pelo pintor Lula Nogueira

Scena IV

Subindo a ladeira depois de uma farra, Zé ia enfezado por causa de uma contrariedade com um elemento de baixa extração. Os moleques rebolavam á sua passagem, os moços descendo para a labuta nas firmas do porto tiravam graça, “A orgia foi boa hein Ramona?!” “Você ainda morre disso cão!”, diziam amigavelmente. Senhores distintos que passavam em seus carros também o cumprimentavam, com cordialidade “Bons dias José, minha senhora quer acertar com você o baquete do prefeito, dê uma passadinha lá”, a estes balançava a cabeça sem olhar e apressava o passo.

Ramona amava primeiro a si mesmo, depois a Donana, Alice e, por extensão a Maria Lúcia, minha avó, a quem levava ao Colégio Sacramento no cangote. (Anos depois fez o mesmo com minha mãe, Lúcia Guiomar, que mantinha uma relação de amor e ódio com ele por conta de um apelido desaforado que lhe botara, “venta de bueiro”, em alusão ás narinas cheias de personalidade dos homens e mulheres da família).

Muito esnobe, Donana adorava ir às compras com Zé Ramona para fazer inveja às senhoras da sociedade. Gostava de se amostrar. Ganhava o mês quando a esposa do governador Silvestre Péricles, Dona Teresa, lhe pedia para ‘emprestar’ Ramona para um banquete em homenagem a não sei quem da capital federal. Iam muito à missa também; Zé era devoto de Santana e fazia questão de ajudar um esmoler que morava no sopé do Alto da Jacutinga. Aliás, para ajudar não fazia distinção: tivesse dinheiro na mão ajeitava putas, estudantes, até mesmo Zé Carlos, filho de Donana, quando queria ir escondido pra farra; quem lhe pedisse ele acudia. E esperava ser tratado da mesma forma em caso de necessidade.

Minha bisavó Ana Lins de Albuquerque Calheiros e minha avó Maria Lúcia Porciúncula Nobre

Feijoada de peru, pitú com pirão de massa puba, rosbife empanado à moda inglesa, bacalhau no côco… a mistura da cozinha portuguesa, negra e litorânea com as novidades trazidas pelos estrangeiros que vinham morar na cidade, nada era estranho ao talento de Zé. Mas a estrela do cardápio era o caruru aprendido com Donana.

Quando mocinha, antes de casar, ela havia ido estudar em Salvador e ficara na casa de um tio muito rico (os ricos de Alagoas eram mais pose do que caixa) que morava em um palacete da Vitória. Lá aprendeu uma receita que acabou passando para minha avó, mãe e caiu nas mãos de duas bisnetas talentosas, mas preguiçosas na cozinha.

RECEITA DO CARURU DE DONANA E ZÉ RAMONA

Como já surrupiaram muito as receitas da família e negar uma orientação é coisa de desalmado, aqui vai a receita do caruru conforme me lembro de ver minha avó fazendo.

Corte em rodelas, veja bem ‘rodelas’, não aquela coisa picadinha que se faz em Salvador hoje em dia, um bocado de quiabo e bote de molho com um pouco de vinagre para tirar a baba. Nisso coloque para fritar, depois de temperar com limão e sal e empanar na farinha de trigo, postas de peixe com carne densa, badejo ou arabaiana são bons, e deixe num canto. Compre camarões grandes, daqueles caros, tire a cabeça, descasque e salteie rapidamente no azeite doce. Pegue as cabeças dos camarões e castanhas de caju, se quiser, acrescente amendoim também, e coloque numa assadeira para torrar. Quando tiver tudo torradinho bata no liquidificador com gengibre. Frite cebola no azeite doce e acrescente o quiabo escorrido, deixe cozinhar um pouco, depois acrescente água, sal e a farinha da cabeça de camarão com a castanha. Vá mexendo pra deixar tudo bem unido, abaixe o fogo e vá mexendo pra não ‘desunerar’. Depois de uns 15 minutos, vai depender da quantidade e da potência do fogo, junte as postas de peixe e coloque leite de côco e um fio de azeite de dendê, só pra temperar, nada de exagero pra não tirar o gosto da comida, espere mais um pouquinho e acrescente o camarão. Dê só uma aferventada e tá pronto.

Coda: José de black tie jantando com Didu

De tanto preparar banquetes para estrangeiros e figurões da capital federal, o nome e o sabor de Zé Ramona chegaram na boca e no ouvido da primeira dama do café soçaite nacional, Teresa de Souza Campos. Casada com o finíssimo Carlos Eduardo de Souza Campos, o Didu, jogador de polo que sempre ostentava um cravo fresco na lapela, Teresa era a ‘number one’ do Brasil, deixando com sua joie de vivre Carmen Mayrink Veiga e Lourdes Catão no chinelo.

Sempre cravando os primeiros lugares nas listas dos mais elegantes do Brasil, seja na coluna de Jacinto de Thormes ou na de Ibrahin Sued, o casal recebia em sua residência da nobreza inglesa a astros de Hollywood, sendo famosa a festa que deram para o playboy Ali Khan e sua esposa na época, a atriz Rita Hayworth. Foram apelidados por Sued de ‘Casal 20’ e Teresa teve seu perfil publicado na Revista Life.

Pois Teresa seduziu Zé Ramona, que voou para a capital federal e aconteceu no café soçaite. Passou o resto de sua vida encantando o paladar dos raffinés cariocas e das estranjas e o olhar dos carnavalescos com suas fantasias, agora exibidas nos bailes da Lapa.

Eurohistory: Princess Teresa of Orléans and Bragança, Last Surviving  Sister-In-Law of the Countess of Paris, Passes Away
Teresa de Souza Campos

Meados dos anos 50, final de tarde em Copacabana, um negro imenso, vestido de libré, caminha com passo cadenciado no calçadão. Em um braço carrega uma sacola com pão, o olhar perdido e um meio sorriso, cantarola o samba ‘Café Soçaite’, de Miguel Gustavo, gravado por Jorge Veiga

“Doutor de anedota e de champanhota/ Estou acontecendo no café soçaite// Enquanto a plebe rude na cidade dorme/ Eu ando com Jacinto que é também de Thormes/ Terezas e Dolores falam bem de mim/ Eu sou até citado na coluna do Ibrahim.// E quando alguém pergunta como é que pode/ Papai de black tie jantando com Didu/ Eu peço outro uísque embora esteja pronto/ Como é que pode? Depois eu conto…”





Foto enviada do Rio de Janeiro por Zé Ramona à minha bisavó Donana

NOTAS PÓS ESCRITAS

Como eu torcia, foram aparecendo informações de parentes e amigos, que acrescento em forma de notas abaixo.

  • Homero Cavalcante dá conta de que Guiomar Alcides de Castro relata que era conterrânea de Zé Ramona e que ele era natural de São Miguel dos Campos; de acordo com Guiomar, era conhecido quando moço por Zé da Almerinda, possivelmente sua mãe, e dançava pastoril encarnando o Fúria, personagem do folguedo.
  • O primo Roberto De Almeida Nobre informa que é voz corrente no métier que Zé Ramona criou a UVA – União dos Viados de Alagoas, com sede no Zeiga, final da rua do antigo Colégio Batista.
  • O querido Guilherme Maia contribuiu com duas informações contadas por seu pai Dr. Franklin: quem levou Zé Ramona para o Rio de Janeiro foi o General de Góes Monteiro. Outra lembrança de Dr. Franklin remete a uma característica de Ramona que acho não fiz justiça no texto: seu bom humor, alegria e carisma, que fazia com que conquistasse a simpatia dos mais variados tipos e personalidades. “Meu pai comenta que ele passava na casa da Antônio Brandão e quando meu avô estava na varanda ela dizia:”Dr. Edgar, meu lindo!”. O sempre (?) austero desembargador sorria e acenava pra ele”.
  • Meu primo Sérgio de Almeida Nobre conta que quando foi estudar no Rio em 1965 soube que Zé Ramona trabalhava na embaixada da Argentina na Praia de Botafogo. E que ele reinou no Zeiga e no Duque de Caxias, que, deduzo, deviam ser cabarés.

1 comentário

  1. Que texto maravilhoso!
    Acho que todas cidades com boas histórias têm um Zé Ramona. Lembro de dois de Conquista (Vitória da Conquista, sudoeste da Bahia).;
    Fiquei curioso em saber mais do Zé, terminou seu dias no Rio de Janeiro? Retornou para Alagoas?
    Aproveite, Ana, e dê sequência ao livro.
    Parabéns!

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