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Uma carta de Teotônio Vilela e meu avô stalinista

Ana Calazans

Fiquei muito pouco com meus avôs. Embora meu avô paterno tenha falecido depois do materno, convivi ainda menos com ele, pois morava em Recife. João Calazans era capixaba. Nascido de uma família ‘tradicional’, tornou-se logo a ovelha negra: era dado a andar com artistas, boêmios e comunistas. Ainda na década de 20 (1929), tentou organizar um Congresso de Antropofagia junto com Garcia de Resende, Atílio Vivacqua e Vieira da Cunha, que não prosperou na então provinciana Vitória.


Jornal Folha Capixaba, fundado por meu avô Fonte: Blog Morro do Moreno

Exerceu o jornalismo por toda a vida; ofício que muito facilitava suas noitadas e gosto pela discussão política. Trabalhou em diversos periódicos e fundou o Folha Capixaba, que chegou a ser o jornal de maior circulação do estado. Com o slogan “Um jornal do povo”, foi criado por ele e por Érico Neves no final do Estado Novo, com o Partido Comunista na legalidade. Circulou pela primeira vez, em 1º de maio de 1945. Meu avô e Érico eram os donos da tipografia onde ele era rodado, mas administração, distribuição e assinaturas ficavam a cargo dos membros do Partidão no Espírito Santo.

A capa de Pequeno Burguês foi feita pelo artista Santa Rosa

Em 1952 publica o romance Pequeno burguês, escrito em 1933. Uma novela irônica, que espicaçava e satirizava comportamentos de uma esquerda ‘pequeno burguesa’. O livro narra as peripécias em São Paulo de um jovem de Propriá que se filia, sem muita convicção, ao Partido Comunista. Entre as aventuras, uma arregimentação de tecelões no Brás, uma deportação e um affair com uma trotskista, Clemência, que trai a ‘causa’ e se junta aos integralistas. Contrariou muita gente.

Nos anos 40, já morando em Belo Horizonte, onde se meteu em confusões políticas por sua inimizade com Juscelino, editou a revista literária Panorama. Meu avô faleceu em Recife, por volta de 75, não lembro bem, mas foi antes de eu decidir ir passar um tempo na França quando eu tinha nove anos. Seu último jornal (ele gostava de criar jornais e não apenas de escrever neles) foi A Crítica, que circulou de forma errática entre os anos 60 e 70, durante a ditadura.

Sua cultura literária e artística eram assombrosas. Seu pequeno apartamento em Boa Viagem tinha as paredes cobertas de livros até o teto. Stalinista, mulherista e whyskista, como sempre cito quando falo dele, era ligado ao PCB de Oscar Niemayer e Cândido Portinari.

Foi amigo de artistas como o próprio Portinari, que o retratou, Di Cavalcanti, que pintou um retrato de sua filha Terezinha, Santa Rosa e Guignard; e de intelectuais como editor José Olympio, Austregésilo de Athayde e Câmara Cascudo.

Retrato de João Calazans feito por Portinari, em 1934

Resolvi escrever sobre meu avô porque achei na canastra de minha falecida mãe (sua nora) uma carta endereçada a ele por Teotônio Vilela. Tenho (assim como a maioria dos que conheço) tido muito desgosto com o nível abissal do intelecto e da moral de nossos políticos e, vai num vai, quando leio algo escrito por Graciliano, por exemplo, fico triste e caio em uma nostalgia nada pragmática.

Outro dia mesmo, li uma autodescrição feita por Sandoval Caju, que foi prefeito de Maceió, em seu livro de memórias O conversador, que só reforçou esse estado de espírito. Espie:

A meu ver, o Homem nasce, vive e morre envolto num denso mistério que a metafísica jamais conseguiu desvendar. De sorte que, ao meu pensamento, não acorre outro raciocínio, senão o de que ele surgiu neste Mundo-cão apenas para curtir a dor, sofrer decepções às vezes, passar vergonha, com maior frequência, nas sociedades comunitárias onde pontifica uma maioria de entes moralmente desfibrados, em meio à qual tenho sido forçado a viver, permanentemente.

Voltando a carta de Teotônio, ela não está datada, mas acredito que tenha sido escrita nos anos 60. Além de seu lirismo e da riqueza das imagens evocadas, a carta é um documento de dois homens que se admiravam e respeitavam mesmo estando – temporariamente, talvez – em lados opostos ideologicamente: meu avô permanecia comunista e dando lençol nos militares que vez em quando batiam à porta de sua casa; Teotônio, filiado a conservadora UDN e prestes, possivelmente, se minha datação estiver correta, a entrar para a Arena.

O alagoano não se furta a abusar o capixaba, anticlerical devotado, ao sugerir que ele escolhesse o posto de “escrivão ou capelão” de sua nau. A correspondência revela também uma ternura masculina enternecedora e, infelizmente, em desuso.

Mas, o que mais me tocou na carta foi uma espécie de fatalismo conformado e melancólico de Teotônio; como se tivesse perdido o mapa de seu destino e o leme de uma “nau” que ele falhou tanto em construir como em guiar e que agora parece conduzi-lo à revelia para não sei onde, permanecendo comandante por teimosia.

A carta de Teotônio para João

Carta de Teotônio Vilela a João Calazans

Você anda à minha procura desde sua viagem anterior. É um absurdo a ausência do encontro. Encontrar, nos encontraremos; mas como dois animais em corrida de “mourão” – um de um lado, outro do outro e um boi no meio para a gente derrubar. Esse “boi” no meio, sem nenhuma dúvida, faz a nossa diferença. A gente podia correr sem ele – mas, quem há-de?

Não sei se fique ou se vá – e, dizendo isso, parece que o dono da vontade sou eu. Engana-se; e com o mais redondo das bobagens. A esta altura da noite, sou um sujeito sem direito à opção; caí na besteira de inventar mundos – coisa de descendente retardado da lusa gente. E sem nau e sem escrivão; e sem frade e sem aventureiros. Pior ainda, andando, andando – sem nunca ver terra. Ainda pior: sem qualquer vocação para marinheiro.

Tudo errado, meu caro João.

Tantas vezes tenho marcado encontro com você e mestre Jambo que agora até me sinto encabulado em não comparecer. Veja você, eu – Capitão de Longo Curso – encabulado. Mas não é por nada, você merece. Simplesmente por isso. Não sei donde você vem e nem para onde vai. Sei apenas que você é um sujeito absurdamente atual e atualmente absurdo. Se o trocadilho é ruim, a intenção vale.

Estivesse pronta a nau em que presumo estar navegando – o João podia escolher posto ou posição, evidentemente que entre escrivão e capelão. Desde que o Jaime de Altavila me apelidou de comandante – comandante sou. E quanto a aventureiros, já os temos demais. O Jambo explica isso com uma simplicidade que é de encantar até altas personalidades – que não somos, as que êle conhece de perto, de longe e de todos os ângulos.

Mas João, não se encomode. Tome as suas famosas prexécas, fale, gesticule, caminhe – dê vida a essa nossa vida pequenina que quase não fala, não gesticula e não caminha. Não preciso citar as excessões – do velho Théo esbelto e do jovem Arnoldo barrigudo, para ficar em duas.

O Êmer está aí? Bom sujeito, em Maceió; péssimo no Rio. Ás vezes me arrependo de ter ajudado a metê-lo no avião, viagem definitiva para longe daqui. A vida é assim: a gente não sabe que fazendo o bem, mergulha no fundo do poço do esquecimento. Afinal trata-se de mocidade, essa mocidade cansada pelo trabalho dos antepassados, e que merece de nós um pouco de complacência pelo êrro dos velhos ousados. Abrace esse cabra; bôa gente.

João, dane-se.

Mas com meu abraço forte, fraterno, sadio.

NOTA

O ‘Jambo’ e o ‘Arnoldo’ citados se referem a Arnoldo Jambo, jornalista e escritor alagoano.

2 comentários

  1. Texto dos melhores que se encontra para ler, isto falando de antigamente. Se falarmos de hoje, não há comparação. Assim, como não há comparação com o nível intelectual de políticos – seja qual for a ideologia (?) – atual e os antigos, ou nem bem antigos, a blogueira deve se lembrar bem quando cobria a política municipal de Salvador e se deliciava com os debates no Plenário Cosme de Farias. Hoje, nem debate, nem discursos irônicos e ricos em citações inteligentes.
    Seu avô seria fácil, fácil um personagem brilhante em livro de Garcia Márquez. O retrato pintado por Portinari deixa ver a personalidade do cabra. Dos nossos. Mandei o link para um punhado de sujeitos que ainda prezam um texto gostoso de ler, uma história real, com imagens cinematográficas que remetem à melancolia, mas ao se encerrar nos flagra com um sorriso.
    Parabéns por mais essa ótima contribuição.

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  2. Memorial do Menestrel SEMEC diz

    Olá, qual o email para contato para a autora do texto? Somos da Prefeitura Municipal de Teotônio Vilela e gostaríamos de conversar. Um Museu está sendo construído no município e será inaugurado depois que tudo isso da pandemia passar. Grande abraço, tudo de bom, se cuida!

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